3.2.06

IMPRESSÕES AFRICANAS DE UMA NATURAL DO EX-IMPÉRIO PORTUGUÊS APÓS VIAGEM AO HEMISFÉRIO SUL

No dia em que fiz 48 anos parti para Moçambique. Regressei dois meses depois. Comigo trazia a cor da madrugada. Comigo trazia o movimento que os meus olhos viram e que nunca cessei de questionar: ao romper da aurora ou à hora de almoço, no crepúsculo fugaz ou no brilho das manhãs, há sempre gente em movimento, gente aos milhares, estrada fora ou mato adentro, que surge do nada, e sem mais está ao nosso e por todo o lado: em barcos sobre as águas do Índico, a cuspir cana de açúcar, não muito longe das palmeiras kindzu onde quiçá espreite uma cobra mamba, em fila indiana com recipientes de plástico amarelo carregados à cabeça e filhos adormecidos carregados às costas, mulheres de capulanas mil no meio da savana, e vento, sempre o vento, o vento que inclina em traço livre as árvores na paisagem ocre, seca e densa.

E que vão eles fazer, onde vai dar esta dança perpétua ? Caminham decididos mas sem destino, parecem não esperar nada e nunca olham para trás. E todavia, eu sei que todos os dias, todos os minutos de cada dia, lutam pela sobrevivência. É uma luta corpo-a-corpo a deles. É uma luta sem fim. Preciso de me aproximar.

Aquele ali venderá um coco. O outro, o que acabou de acenar ao four by four que lhe empoeirou a roupa e a saliva, irá fazer carvão no meio do mato, que mais tarde as mulheres venderão em sacos alinhados à beira da estrada esburacada. E aqueles bando de putos que os faróis acabam de iluminar? Vão para a escola de sacola às costas, de sacola e fardados como os meninos ingleses, só que não são meninos ingleses. São meninos africanos. E todos os dias palmilham quilómetros e quilómetros para aprender uma língua cheia de vogais fechadas que não tardarão a musicar à sua maneira.

À beira da estrada vende-se capim elefante, que reconhecerei depois nas esteiras e nos telhados das aldeias, à beira da estrada há laurentinas e caju picante, à beira da estrada um homem caminha à frente das suas duas mulheres. Não, por ali não, ali é caminho de leopardo. Agora vejo pirâmides de tangerinas à espera de comprador. Não estou com miragens, estou em África, estou na África Austral.

Parada à sombra duma micaia, vejo um chapa passar ao largo como um navio que cruza o oceano. E no chapa de caixa aberta vai dependurada uma catrefada de gente. Gente que vai a Maputo. Vai ao mercado do XIPAMANINE. E eu que atravessei a baía num catimbeiro, e eu que comprei capulanas na Loja Elefante e um relógio Nike na avenida Guerra Popular, e eu que bebi Amstel no Luso e vi uma mulata actuar minimalista numa sessão de streap-tease, eu, eu vou com eles.

Já deixámos a Eduardo Mondlane para trás e estamos quase a entrar numa rotunda. Sempre pela esquerda, ouvimos marrabenta dentro do chapa. A preta gorda de capulana aos quadrados e t-shirt amarela mais os seus três sacos de plástico diz peremptória: “Paragem, cobrador” e entrega uma moeda de cinco mil meticais. E o cobrador, rapaz de boné de basebol e calças a escorregar nos quadris, bate com a mão que segura a moeda no tecto da hiace branca. O motorista suspende a marcha. O cobrador abre a porta lateral, salta para o alcatrão. Dobra o banco individual que atravanca o acesso à porta e dois outros passageiros saltam também para o alcatrão. Sai a gorda, saem os sacos de plástico, entram os passageiros, entra o cobrador e seguimos até Xipamanine, cada vez mais gente, cada vez mais chapas, cada vez menos África minha.

Mas o que é que se passa? Ah! Já me tinha esquecido. Está toda a gente a olhar para mim. É que não há, nem é provável que haja, nenhuma outra branca nas redondezas. Xipamanine - um mercado municipal situado no bairro do mesmo nome, não longe de Mafalala – é um mar de gente e de mercadorias. Gente que circula a uma cadência calculada, mercadorias que se apresentam impecavelmente organizadas, quer na zona exterior, quer na zona interior do mercado, onde habitáculos de metal ou estruturas de madeira se distribuem, ao longo de estreitas passagens geometricamente pensadas, por secções, segundo a natureza e procura dos bens. Temos áreas destinadas à venda de animais vivos, galinhas, cabritos e pintainhos, temos as áreas dos artigos de mercearia, dominadas por indianos, resguardados atrás de grades, temos a zona-talho e sua incansável fauna voadora, temos tudo. Peixe seco, cocos, utensílios de cozinha, take-away, hi-fi, cartões telefónicos pré-pagos, blá-blás para telefones fixos, giros para telemóveis, temos roupa usada , roupa nova, roupa para adultos, roupa para criança, sapatos, de homem, senhora e criança, malas, sacos e mochilas, relógios e outras bugigangas, temos os remédios de medicina tradicional e produtos vários para feitiços, temos pele de zebra, pata de elefante, chifre de javali, pele de crocodilo e pele de cobra, mãos de chimpanzés, ovos de avestruz, dentes de proveniências várias e várias raízes para efeitos vários. Dê-me um exemplo. Por exemplo, senhor Rubem, para que serve esse ramo de madeira de cor amarela, tão psicadélico, tão veraneante? Para nos fazermos respeitar.

Xipamanine é o local de encontro desta gente que passa a vida em movimento perpétuo e que ao chegar a noite calculo eu que só lhe apeteça dizer, dizer como Craveirinha, esse assombroso poeta africano que nasceu e viveu em Mafalala, como Eusébio, e escreveu em português, como Camões:

Ó velho Deus dos homens
eu quero ser tambor
e nem rio
e nem flor
e nem zagaia por enquanto
e nem mesmo poesia.

Só tambor ecoando a canção da força e da vida
só tambor noite e dia
dia e noite só tambor
até à consumação da grande festa do batuque!

Oh, velho Deus dos homens
deixa-me ser tambor
só tambor!

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