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Mónica Calle (FOTOGRAFIA DE BÁRBARA VALENTINA) |
A MÓNICA CALLE É A MÓNICA CALLE EM QUE EU ESTOU A PENSAR?
É.
Poucos, muito poucos, dias antes da rodagem fui jantar com a Mónica. Estivemos em 2 restaurantes, depois em 2 bares. No primeiro e no último bebemos vinho tinto. Nos outros dois também. Tudo fechou. Não sei porquê, não estávamos preparadas para um horário tão recatado. Estou certa que passava pouca das 2 da manhã. Desamparadas, ei-nos na praça de taxis do Camões, já conformadas com o destino do lar, doce lar. Encostámos-nos à caixa de electricidade na esquina do prédio onde a paragem começa. A Mónica para fumar o último cigarro, eu para fazer companhia à Mónica enquanto ela fumava. Não contava que levasse tanto tempo a fumar o último cigarro. Parecia a noite do número 2. Levou 2 horas a a fumar o último cigarro. E eu levei 2 horas a vê-la fumar o último cigarro. Foi então que, pelos intervalos do fumo e dos olhares dos passageiros que apanhavam os taxis que paravam à nossa frente, me falou de um poema de Cesare Pavese. Lembrava-se de tudo. Da capa do livro, da editora, das vezes que o tinha lido, do sítio onde o tinha em casa. Só não se lembrava do poema. Minto. Lembrava-se de dois versos. Porque na cabeça dela estava o poema inteiro.
Cheguei a casa depois da hora prevista. Há muito que tinha passado das 2 da manhã. Procurei o poema antes que amanhecesse. Não suporto a luz da madrugada. Encontrei-o. Guardei-o junto ao B.I. Viajei com ambos para Beja.
AFINAL, QUAL ERA O PRIMEIRO VERSO ?
Irei pelas ruas até cair morta de cansaço.
E O SEGUNDO ?
Longe vão as manhãs em que tinha vinte anos.
(Agonia)
Irei pelas ruas até cair morta de cansaço
saberei viver sozinha e reter nos olhos
cada rosto que passa e continuar a ser a mesma.
Esta frescura que sobe e me busca as veias
é um despertar que em manhã nenhuma sentira
tão real: sinto-me simplesmente mais forte
que o meu corpo e um arrepio mais frio
acompanha a manhã.
Longe vão as manhãs em que tinha vinte anos.
E amanhã, vinte e um: amanhã sairei para a rua,
lembro-me de cada pedra da rua e das nesgas do céu.
A partir de amanhã as pessoas ver-me-ão outra vez
de pé e caminharei direita e poderei parar
e mirar-me nas montras. Nas manhãs do passado,
era jovem e não sabia, nem sabia sequer
que era eu que passava – uma mulher, dona
de si mesma. A rapariguinha magra que fui
despertou dum pranto que durou anos:
agora é como se esse pranto nunca tivesse existido.
E desejo só cores. As cores não choram,
são como um despertar: amanhã as cores
voltarão. Cada mulher sairá para a rua,
cada corpo uma cor – e até as crianças.
Este corpo vestido de vermelho claro
após tanta palidez voltará à vida.
Sentirei à minha volta deslizarem os olhares
e saberei que sou eu: olhando à volta,
ver-me-ei no meio da multidão. Em cada nova manhã,
sairei para a rua em busca das cores.
Cesare Pavese, “Trabalhar Cansa”
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